A harpa sem
cordas
Na tradição sufi, muitas vezes subtil e até
secreta, conta-se a história de um eremita com grande reputação e de poderes
incomparáveis que vivia retirado num deserto.
Um dia, em que estava imóvel como todos os dias no
mesmo lugar, viu aparecer no horizonte uma espécie de bola de pó. A bola
engrossou, engrossou e o eremita em breve percebeu que um homem se aproximava
dele correndo, e era o que levantava a poeira.
O homem, que era jovem, chegou ao pé do eremita e
prosternou-se diante dele. O eremita levantou-o. Deixou-o recobrar o fôlego e
perguntou-lhe:
-
Que queres tu?
- Mestre – respondeu-lhe o jovem – vim para ouvir-te
tocar a harpa sem cordas.
- À
vontade – disse o eremita.
O santo homem não mudou de todo a posição. Não
pegou em nenhum instrumento, não fez nada. O eremita e o fervoroso discípulo
ficaram imóveis em frente um do outro durante «um certo tempo» e este certo
tempo, conforme a disposição ou a formação dos contadores, durou umas horas,
uns dias ou uns anos. Aliás, não tem importância.
Passado
esse «certo tempo», o jovem deu a entender, talvez por um gesto, por uma vénia,
por um tossicar, um princípio de fadiga.
-
Que tens? – perguntou-lhe o eremita.
O
jovem mostrou alguma hesitação ao responder. Gaguejou. Não se percebia bem o
que queria dizer. Para o auxiliar, o eremita perguntou, inclinando-se para ele:
-
Não ouviste nada?
-
Não – respondeu o jovem com voz culposa.
-
Então – perguntou-lhe o eremita – porque não me pediste que tocasse mais forte?
Jean-Claude Carrière, in “Tertúlia de Mentirosos”
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