TRAIÇÕES
E INTERPRETAÇÕES
Arte de sínteses, o teatro
amplia o significado das mais simples frases na linguagem da atitude, da cor,
do som, da luz.
Há portanto que prolongar
a ideia na interpretação, e que a classificar na expressão. E para isso não
deve o actor, sob pena de atraiçoar a obra, recorrer a processos pessoais,
aqueles processos naturalmente aconselhados pela sua sensibilidade de homem,
mas sim aos processos que se coadunam com o espírito e com a índole da peça.
O actor tem que estudar,
principalmente quando se trata de teatro clássico, o reajustamento de
processos, devendo ter em consideração a época, o estilo do autor e a formação
do público para quem representa. Este deve ser o trabalho intelectual de todo o
intérprete digno deste nome.
O autor confia ao talento
do intérprete qualquer coisa de muito precioso, que não é só a obra
materialmente contida num caderno de papel, que não é só a ideia logicamente
exposta, que é também e principalmente uma confidência de sensibilidade, mais
do que um estado sentimental, uma potencialidade de sentir. Quando um homem tem
a honra de receber de outro homem um depósito destes e o deforma para o adaptar
a si próprio, comete pura e simplesmente um delito moral que o devia encher de
vergonha.
Rouba mais do que um
pensamento porque rouba uma alma, empobrece mais do que um homem porque
delapida uma obra, mata mais do que um sonho porque compromete a perenidade de
uma ideia.
À luz portanto de um juízo
objectivo, calmo e imparcial, todas essas adaptações de personagens, todas
essas inspirações momentâneas de intérpretes, todas essas habilidades
histriónicas dos chamados mestres de êxitos que se arrastam com o cabotinismo
por grande parte dos palcos de todo o mundo e de todos os séculos, são afinal
apenas uma infame espoliação do espírito.
Não suponha ninguém que é
grande actor pelo simples facto de ser aplaudido, é preciso apenas que siga de
perto, lado a lado, o destino da obra que interpreta.
O actor que tem um êxito
pessoal numa peça falhada, pode ter a certeza absoluta que cometeu um abuso de
confiança. E quantas vezes ofuscado pelo clarão de glória que envolve o autor,
não foi o intérprete elemento essencial do êxito!
O actor não é um criador
puro, é um instrumento de expressão do autor, é mármore plasticizado por um
génio alheio, é tinta de uma paleta que outro compôs e só tendo a noção disso a
personalidade do actor passa com incólume nobreza por tudo o que na sua arte se
pode parecer com vaidosa exibição, com hábil aproveitamento de dotes físicos,
com torpe cabotinismo de vaidades ocas. E só despindo-se de cabotinismos e
vaidades, se pode chamar a um homem com talento – artista.
Não nos iludamos portanto
com a dignidade artística de determinados actores que aplicam a sua elegância,
a sua vibração dramática, ou o seu físico especial para enlevarem o público,
sendo sempre eles próprios em todas as peças.
Nestes seres não há paixão
por uma ideia, mas simplesmente ignóbil narcisismo, e sem paixão não há arte.
Eleonora Duse na sua
companhia ambulante, pobre e ignorada, sem dinheiro para se vestir de luto
quando se viu só no mundo, persistia sob os apupos de toda a vilanagem dos
palcos, a dar a sua alma nua aos poetas; hoje falar na Duse é invocar toda a
grandeza de uma profissão e de uma arte.
Por muito cruel que seja a
subalternidade imposta pelo arbítrio das empresas, que não desanimem os novos
com verdadeiro amor ao teatro, porque os que se amam a si próprios morrerão e a
arte é imortal.
A vida do teatro oferece frequentemente exemplos
desta verdade: não é preciso ser-se cabeça de cartaz para que o público saiba
onde estão os grandes artistas.
É evidente que deve haver
horas tenebrosas nessa arte tornada profissão, quando sistematicamente aos
artistas são distribuídos papeis que não lhes convêm porque os empresários
conhecem as suas próprias deficiências; mas não se corta o caminho do génio
mesmo quando se distribuem rábulas. Basta o eco de uma inflexão justa num
diálogo de cabotinos artificiais, para que o rabulista varra os astros com uma
vassourada de verdade.
Fora do ambiente da peça,
da convenção entre autor e público, que Sarcey via na colocação do problema
teatral, todas as habilidades por maiores que sejam soam a falso, pois
esbracejam apenas moinhos sem grão.
Desde que as empresas se desinteressam
do real valor artístico das suas peças, compreende-se até que caos de desordem e
de empobrecimento mental chegou ao teatro português, abrindo as portas pela sua
voluntária acefalia, a toda e qualquer habilidade vistosa do mais despudorado cabotino.
ANTÓNIO DA COSTA FERREIRA (Elvas,
Portugal, 1918 - Lisboa, 1997), actor, encenador e dramaturgo.
in “Mundo Literário” – Semanário
de crítica e informação literária, científica e artística -1947 (excertos)
Sem comentários:
Enviar um comentário