GUERRA JUNQUEIRO
(Freixo de Espada à Cinta, Portugal,1850 -
Lisboa, 1923)
Escritor, poeta, político e jornalista
A BÊNÇÃO DA LOCOMOTIVA
A obra está
completa. A máquina flameja
desenrolando o fumo
em ondas pelo ar.
Mas antes de
partir, mandam chamar a Igreja,
que é preciso que um bispo a venha baptizar.
Como ela é com
certeza o fruto de Caim,
a filha da razão,
da independência humana,
botem-lhe na
fornalha uns trechos de latim,
e convertam-na à fé católica romana.
Devem nela existir
diabólicos pecados,
porque é feita de
cobre e ferro, e estes metais
saem da natureza,
ímpios, excomungados,
como saímos nós dos ventres maternais !
Vamos,
esconjurai-lhe o demo que ela encerra,
extraí a heresia do
aço lampejante!
Ela acaba de vir
das forjas d'Inglaterra,
e há-de ser com certeza um pouco protestante.
Para que o monstro
corra em férvido galope,
como um sonho
febril, num doido turbilhão,
além do maquinista
é necessário o hissope
e muita teologia... além d'algum carvão.
Atirem-lhe uma
hóstia à boca famulenta,
preguem-lhe alguns
sermões, ensinem-lhe a rezar,
e lancem na
caldeira um jarro d'água benta,
que com água do céu talvez não possa
andar.
in "A Velhice
do Padre Eterno", 1885
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