Carta 80
«Hoje tenho o tempo todo por minha conta, benesse que fico devendo menos a
mim próprio do que à realização de uma “esferomaquia” e à atracção que tal
espectáculo exerceu sobre todos os possíveis importunos. Ninguém virá
interromper-me, ninguém impedirá o curso das minhas meditações que assim, com
esta certeza, prossegue com maior firmeza. Não ouvirei de vez em quando a porta
a abrir-se, não verei afastar-se a cortina do meu gabinete: poderei prosseguir
em paz e sossego, o que é tanto mais necessário para quem caminha sozinho
seguindo a sua própria via.
Não pretendo negar que sigo os meus predecessores; claro que os sigo, mas
reservando-me o direito de descobrir, alterar ou abandonar alguma ideia; não
sou escravo dos meus mestres, apenas lhes dou o meu assentimento!
Mas creio que falei demais quando me gabei de poder gozar uma tarde de
silêncio e um retiro livre de interrupções: agora mesmo me chega aos ouvidos um
enorme clamor vindo do estádio, o qual, se me não corta o pensamento, pelo
menos o desvia para a consideração do fenómeno desportivo. Ponho-me a pensar na
quantidade dos que exercitam o físico, e na escassez dos que ginasticam a
inteligência; na afluência que têm os gratuitos espectáculos desportivos, e na
ausência de público durante as manifestações culturais; enfim, na debilidade
mental desses atletas de quem admiramos as espáduas musculadas.
E penso sobretudo nisto: se o corpo pode, à força de treino, atingir um
grau de resistência tal que permite ao atleta suportar a um tempo os murros e
pontapés de vários adversários, que o torna apto a aguentar um dia inteiro sob
um sol abrasador, numa arena escaldante, todo coberto de sangue – não será mais
fácil ainda dar à alma uma tal robustez que a torne capaz de resistir sem ceder
aos golpes da fortuna, capaz de erguer-se de novo ainda que derrubada e
espezinhada?!
De facto, enquanto o corpo, para se tornar vigoroso, depende de muitos
factores materiais, a alma encontra em si mesma tudo quanto necessita para se
robustecer, alimentar, exercitar.
Os atletas precisam de grande quantidade de comida e bebida, de muitos
unguentos, sobretudo de um treino intensivo: tu, para atingires a virtude, não
precisarás de despender um tostão em equipamento! Aquilo que pode fazer de ti
um homem de bem existe dentro de ti. Para seres um homem de bem só precisas de
uma coisa: a vontade. Em que poderás exercitar melhor a tua vontade do que no
esforço para te libertares da servidão que oprime o género humano, essa
servidão a que até os escravos do mais baixo estrato, nascidos, por assim dizer,
no meio do lixo, tentam por todos os meios eximir-se?
O escravo gasta todas as economias que fez à custa de passar fome para
comprar a sua alforria; e tu, que te julgas de nascimento livre, não estás
disposto a gastar um centavo para garantires a verdadeira liberdade? (…)
Mas para quê falar dos outros? Pensa em ti: se quiseres saber quanto vales
não atendas aos teus rendimentos, à tua casa ou à tua posição social, olha sim
para dentro de ti, em vez de, como agora, acreditares no valor que os outros te
atribuem!»
Fonte: Fundação Calouste Gulbenkian
Nota: Séneca - filósofo
Lucílio – poeta satírico latino
Lucílio – poeta satírico latino
Sem comentários:
Enviar um comentário