sábado, 3 de outubro de 2015

CONTOS TRADICIONAIS PORTUGUESES – O Velho Querecas

 
 
 
 
 
 

O Velho Querecas

 
Eram três irmãs, muito pobres, que viviam do seu trabalho aturado. Naquela terra havia uma casa em que ninguém queria morar porque lá dentro ouviam-se de noite grandes gritos e terrores; as raparigas, para pouparem o aluguer, foram pedir para as deixarem morar naquela casa. A mais nova, como mais animosa, foi morar para o último andar.

Uma noite, mal ela se tinha acabado de deitar, ouviu uma voz gritar:

– Eu caio!

– Pois cai! – respondeu-lhe a rapariga. De um buraco do teto caiu uma perna. Depois soou de novo o mesmo grito:

– Eu caio!

– Pois cai! – repetiu a rapariga; e assim foram caindo os braços, o tronco, até que ela achou diante de si um homem já muito velho e calvo. O velho chegou-se próximo da rapariga, e perguntou-lhe:

– Não tens medo de mim?

– Não.

– Fazes muito bem; és a primeira e única pessoa que resiste ao medo de me ver. Em paga da tua coragem toma lá esta bolsa, e quando te vires nalguma aflição diz sempre: Valha-me aqui o velho Querecas.

O dinheiro da bolsa nunca se acabava, e as três irmãs começaram a viver com largueza. No entanto a mais nova começou a sentir que por mais que se fechasse no seu quarto parecia-lhe que sentia meter-se alguém na cama com ela. Lembrou-se se seria o velho Querecas, e teve uma certa repugnância; mas para certificar-se, uma noite acendeu de repente a luz, e viu deitado ao pé dela um mancebo formoso, que estava adormecido. Estava tão embebida a olhar para ele, que lhe caiu um pingo de cera na cara. O mancebo acordou de repente, e disse:

– Ah! Desgraçada, o que fizeste; dobraste-me o encantamento, que estava quase no fim! Agora não me tornas mais a ver.

A menina chorou muito, e ainda mais quando conheceu o estado em que se achava. Lembrou-se então do segundo dom, e disse:

 

– Valha-me aqui o velho Querecas.

 

– Aqui estou já, e bem sei porque me chamas. Há só um modo de remediar o mal que a ti mesma fizeste. Toma lá estes três novelos, e vai andando sempre, sempre até onde eles se acabarem; onde quer que seja pede que te deem aí pousada do ar da noite.

 

A rapariga chorou por ter de deixar as irmãs, mas o que ela queria era quebrar o encantamento daquele moço; foi andando, andando até ir dar ao fim de muito tempo a um palácio cercado de um rico jardim. Espreitou pelo buraco da chave, e viu lá dentro uma sala com muitas mulheres trabalhando em lindos vestidos de noivado, e fazendo as roupinhas de uma criança. Teve receio de bater àquela porta, e foi rodeando o palácio, até que encontrou o hortelão, a quem pediu pousada. O hortelão respondeu-lhe:

 

– Você sabe em casa de quem está para vir assim pedir pousada?

 

– O que sei é que já me não tenho de cansada; e é por uma esmola.

 

O hortelão teve dó da rapariga e deu-lhe um canto no palheiro; ela deitou-se mais morta que viva, e ali mesmo deu um menino à luz. Tudo aquilo se transformou num quarto muito asseado e rico. Quando o hortelão veio ao outro dia, ficou pasmado com o que viu. Foi dar logo parte à rainha, que também quis certificar-se da maravilha. Quando chegou ao lugar em que estava a menina deu um grito ao ver a criança:

 

– Oh senhora! Quem é o pai deste menino?

 

A rapariga ficou muito envergonhada por não poder logo dizê-lo; no meio da sua confusão contou o caso do velho Querecas. Foi então que a rainha se lembrou:

 

– Esse menino é o retrato de meu filho, que me desapareceu, sem nunca mais saber dele nova má nem boa.

 

A rainha levou a rapariga para o palácio, tratou de lavar a criança, e quando a despiu achou-lhe nas costas um grande sinal. Reparou, e viu que era um pequeno cadeado com uma chavinha. Quis ver se o abria, mas com receio disse à mãe que experimentasse a ver se dava volta àquela chavinha. Logo que a mãe pegou na chave abriu o cadeado, e imediatamente se quebrou o encantamento do príncipe que deveu a sua liberdade ao ânimo daquela rapariga com quem casou logo.

 

 

 Contos Tradicionais Portugueses por Teófilo Braga

Imagem: pintura de Peter Paul Rubens (Siegen, Alemanha, 1577 – Antuérpia, Bélgica, 1640).

 

 

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