terça-feira, 9 de agosto de 2016

FRANZ KAFKA – Carta ao Pai






Carta ao Pai é uma das obras de Franz Kafka, editada postumamente, onde o escritor revela o seu talento para entender a alma humana, as causas da relação inquietante com o seu pai, comerciante judeu, que sempre impôs aos filhos a sua visão do mundo. As suas emoções em relação ao pai oscilavam entre o ódio e a admiração. Esta extensa carta com mais de cem páginas manuscritas e que nunca foi enviada ao seu destinatário, é uma obra de arte, sobretudo na análise do relacionamento entre pais e filhos.



Querido pai

“Perguntaste-me há pouco tempo por que razão digo que tenho medo de ti. Como de costume, não soube o que responder, em parte precisamente devido ao medo que sinto de ti, mas também porque para fundamentar esse medo seria preciso entrar em muitos pormenores, que nem de longe conseguiria ter presentes ao falar. E se tento por este meio responder-te por escrito, o resultado continuará a ser muito incompleto, porque também ao escrever o medo e as suas consequências perturbam a comunicação contigo, e a escala da matéria se situa muito para além da minha memória e do meu entendimento. (…)

Para ti, as coisas colocavam-se mais ou menos assim: toda a tua vida trabalhaste muito, sacrificaste tudo pelos teus filhos, especialmente por mim, e por isso “vivi à grande”, tive toda a liberdade de estudar o que quis, nunca tive preocupações materiais nem de qualquer outra ordem. (…)

Eu era uma criança assustadiça, e apesar disso também teimosa, como são em geral as crianças. É verdade que a mãe me mimou, mas não acho que fosse uma criança especialmente difícil. (…)

Tu, só sabes tratar uma criança à luz da tua própria natureza, com força, barulho e cólera, e neste caso até achavas que era o método mais adequado, já que querias fazer de mim um rapaz cheio de força e audácia. (…)

Lembro-me, por exemplo, de quando nos despíamos juntos numa cabine. Eu, magro, fraco, esguio; tu, forte, alto, largo. Logo na cabine, já me sentia uma figura lamentável, não apenas perante ti, mas perante o mundo inteiro, porque tu eras para mim a medida de todas as coisas. (…)

Bastava eu mostrar algum interesse por alguém – coisa que, dada a minha natureza, não acontecia muitas vezes – para tu intervires brutalmente, sem querer saber dos meus sentimentos e sem respeitar a minha opinião, com injúrias, calúnias, humilhações. (…)

Como tinhas sempre muita fome e um gosto especial pela comida, engolias tudo depressa, quente e em grandes bocados, e eu, pequeno, tinha de me apressar, fazia-se um silêncio de cortar à faca, só interrompido por exclamações tuas: “Primeiro come-se, depois fala-se.” (…)

Era proibido roer os ossos – mas tu roías. Era proibido sorver o vinagre – mas tu sorvias. (…)

Por favor, pai, vê se me entendes bem: tudo isto não passaria de pequenas coisas insignificantes, que só se tornavam humilhantes para mim porque tu, o homem que era o meu exemplo maior, não obedecias aos mandamentos que me obrigavas a mim a seguir à risca. (…)

Reconheço que temos os nossos conflitos, mas há dois tipos de combate. O cavalheirismo, em que se defrontam dois adversários independentes, e cada um fica só, ganhando ou perdendo sozinho. E o combate do parasita, que não só pica como suga o sangue do outro para sobreviver. É o que se passa com o soldado profissional e contigo. És incapaz de viver, e para te poderes instalar sem preocupações, confortavelmente e sem remorsos, provas que fui eu quem te tirei a capacidade de viver e a meti no bolso. Que te importa agora se és ou não capaz de viver, se a responsabilidade é minha! ” (…)




in “Carta ao Pai” (excertos)

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