PICASSO
– Não há arte abstracta
«Não
há arte abstracta. Tem de se começar sempre por alguma coisa. Depois, pode
tirar-se toda a aparência de realidade; já não há perigo, porque a ideia do
objecto deixou uma marca indelével. Foi ele que provocou o artista, que excitou
as suas ideias, pôs em movimento as suas emoções. Ideias e emoções serão
definitivamente prisioneiras da sua obra; façam o que fizerem, já não poderão
fugir ao quadro; tornaram-se parte integrante dele, mesmo quando não seja possível
distinguir a sua presença.
Queira ou não queira, o homem é um instrumento da
natureza; esta impõe-lhe o seu carácter, a sua aparência. Nos meus quadros de
Dinard, como nos meus quadros de Pourville, exprimi mais ou menos a mesma
visão. Mas o senhor notou como é diferente a atmosfera dos quadros feitos na
Bretanha e na Normandia, pois reconheceu a luz das falésias de Dieppe. Essa
luz, não a copiei, não lhe prestei atenção especial. Fui simplesmente banhado
por ela; os meus olhos tinham-na visto e o meu subconsciente registou a visão
deles; a minha mão fixou as minhas sensações. Não se pode contrariar a
natureza. Ela é mais forte do que o mais forte dos homens! Todos temos
interesse em estar de bem com ela. Podemos permitir-nos algumas liberdades –
mas apenas no pormenor.
Tampouco
existe arte figurativa e não figurativa. Todas as coisas nos aparecem sob a
forma de figuras Mesmo em metafísica, as ideias são expressas por figuras, e
veja assim como seria absurdo pensar na pintura sem as imagens das figuras. Uma
personagem, um objecto, um círculo, são figuras, que têm uma acção mais ou
menos intensa sobre nós. Umas estão mais próximas das nossas sensações,
produzem emoções que tocam as nossas faculdades afectivas; outras dirigem-se
mais particularmente ao intelecto. É necessário aceitá-las todas, porque o meu
espírito não tem menos necessidade de emoção do que os meus sentidos.
Pensa que
me interessa que este quadro represente duas personagens? Estas duas
personagens existiram, mas já não existem. A sua visão deu-me uma emoção
inicial, pouco a pouco a sua presença real foi-se esfumando, tornaram-se para
mim uma ficção e depois desapareceram, ou melhor, foram transformados em
problemas de toda a espécie. Já não são para mim duas personagens, mas formas e
cores; entendamo-nos, porém: formas e cores que resumem, contudo, a ideia das
duas personagens, e conservam a vibração da sua vida.
Comporto-me
com a minha pintura tal qual como perante as coisas. Faço uma janela
exactamente como olho através duma janela. Se esta janela aberta não fica bem
no meu quarto, corro um cortinado e fecho-a. É preciso agir tal qual como na
vida, directamente. Bem entendido, a pintura tem as suas convenções, que é
necessário ter em conta, pois que não é possível fazer de outro modo. E por isso
é preciso ter constantemente diante dos olhos a presença da vida.
O
artista é um receptáculo de emoções vindas seja donde for: do céu, da terra, de
um pedaço e papel, de uma figura que passa, de uma teia de aranha. Por isso é
que não se deve distinguir entre as coisas. Para ela não há cartas de nobreza.
Toda
a gente quer compreender a pintura. Porque não tentam compreender o canto dos
pássaros? Porque é que se gosta de uma noite, de uma flor, de tudo o que rodeia
o homem, sem se tentar compreendê-lo? Mas quando se trata de pintura, querem
compreender. Que sobretudo compreendam que o artista cria por necessidade; que
ele é também um ínfimo elemento do mundo, ao qual não se deveria atribuir mais
importância do que a tantas coisas da natureza que nos encantam, mas para que
não pedimos explicação. Aqueles que procuram explicar um quadro seguem quase
sempre o caminho errado. Gertrude Stein anunciou-me, toda contente, há tempos,
ter compreendido por fim o que representava o meu quadro «Três músicos»: Era
uma natureza morta.»
(Fragmentos de conversação,
recolhidos por Christian Zervos, e publicados no volume “Picasso – 1930-35” (Cahiers
d´Art, Paris).
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Imagem: Auto-retrato de Pablo
Picasso, feito em 1907. Foi a pintura que anteviu o movimento cubista.
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