Carta
de Miguel Rovisco para Mário Viegas
Lisboa, 21 de Julho de
1986
Mário,
Como
é sabido, por vaidade todo o autor escreve as suas obras para que estas sejam
lidas; no que respeita a cartas, então é meio mundo a escrevê-las para meio
mundo as ler. Há, contudo, honrosas excepções: tal como a minha parente
sentimental para o seu cavaleiro Chamilly, também eu neste momento posso
afirmar que escrevo para mim próprio. A modéstia! Primeiro, porque o meu
pessimismo patriótico não crê que uma carta deitada num marco dos correios em
Lisboa consiga alguma vez atingir o Porto; segundo, porque o meu bom amigo
respeita-se o suficiente para compreender que se esta epístola começa mal há-de
acabar ainda pior, e assim sendo terá a delicadeza de a pôr de lado – queime-a
– sem passar além deste parágrafo. Bom, agora que estou positivamente certo de
que escrevo “pour moi même”, abalanço-me com toda a liberdade. O narcisista!
...
Mas há-os aos pontapés, a eles – só que eu sou-o e não me exibo, ao passo que
eles são-no e se exibem por todos os lados e todos os lagos. Os narcisos,
claro! Como lhe informei no nosso único encontro, tenho vindo a fazer parte do
júri do Festival de Teatro Amador de Lisboa 86 – ninguém me avisou a tempo, a
mim que nada percebo destas coisas, embora o devessem ter feito. Ai os membros
do júri! Ai as pessoas conhecidas dos membros do júri! Ai ainda as pessoas que
os membros do júri não conhecem mas que se dão a conhecer... – juri-lhe
(leia-se: “juro-lhe”), ó Mário... e tu, ó pá, que me não avisaste! Se o teatro
é isto (refiro-me a ele como um todo, não apenas ao amador), que faço eu aqui
metido?
Em
teatro odeio os bons actores – deixemos de lado os que se julgam bons -, para
admirar incondicionalmente os saltimbancos. O que é necessário: um teatro de
estrada e de talento que substitua o actual teatro de conservatório e de
subsídios. O teatro converteu-se numa espécie de religião da qual, à abundância
de pregadores, Deus achou por bem ausentar-se – aquilo já nada era a ver com
ele. A pioria, contudo, está nas “tournées” pedantes: tudo torna ao mesmo
sítio. Ao mesmo igual. E diz-se que o povo ficou mais culto. O povo, claro, não
deu por isso (o-festival-de-teatro-em-Setúbal, só de pensar nisso me
arrepio...). Porque o teatro, salta aos olhos, não é para o povo. Faz-se
teatro, claríssimo, com o único objectivo do subsídio. O objectivo é que o
ministério se agrade de nós. Que o subsídio, ó actores, sempre subsista!
(Depois desta minha curta experiência pelos palcos – horrível, pelos bastidores
-, eis o meu grito de guerra: “Abaixo o teatro, vivam os ciganos!”)
Quanto
ao que eu tenho feito dia a dia, bem pouca coisa! No meu emprego, como estamos
entrados nos últimos seis meses do ano, preencho com paciência bíblica milhares
de fichas com as duas palavrinhas que me valem os 25.000$00 mensais: “2º
Semestre”. (Entre nós, com manha chulista abrevio a palavra “semestre” para “2º
semen” – e é vê-las, as coleguinhas da função pública a abanarem-se do calor
com as fichas cheias disso! A gente por cá diverte-se assim.) No outro dia, à
tardinha, registou-se a catástrofe atómica da televisão ter dado o berro para
depois nem mais um pio, precisamente – há maldade nestas coincidências do
universo – no início da telenovela. Enquanto a minha mãe se disparava para a
casa de banho, finalmente tomada a consciência da precária situação da mulher
na sociedade deste século – “que eu até vomito o jantar, que não sei o que
hei-de fazer à vida” -, eu ofereci-me um passeio pelo Jardim da Estrela. Eram
nove da noite, mas ainda entardecia: eu de gravata e descalço – pois é verdade
que me descalcei. Como foi bom! Como me passou a neura, por sentir ainda o
morno da terra na planta dos pés. Lamentavelmente, vi-me forçado a escrever
mais um poema... – já não é inspiração aquilo, é mania! Mas o verde eterno das
árvores, isso é sempre agradável. A propósito, faço tenções de ter um busto no
Nacional, apesar de tudo, e uma estátua a corpo inteiro no Jardim da Estrela,
perto do coreto, para alívio da perna alçada de qualquer rafeiro. Evidentemente
– porque se apressa você em tirar conclusões? – isto sucederá uns trinta anos
depois da minha morte - e, também é de evidência, cantar-se-á um Te Deum. Este
sim, merecido.
Não
lhe pergunto como vão as coisas aí pelo T.E.P., porque cá ou lá a trampa deve
ser a mesma. Quanto a mim, que ainda não sou obra de arte, hesito se deverei ou
não pôr de lado a escrita dramática. É certo que, desde o nosso encontro
primaveril, escrevi mais uma peça e já tenho ideias – e título – para a
seguinte. Falta-me, todavia, o principal: a vontade de ser útil à sociedade.
(Não, não... se o meu amigo lhes ler esta carta daqui a algumas décadas, eles
desistirão do urinol canino e dos cânticos celestes.) No que toca ao teatro,
estou tentado a sacudir-me.
Um
abraço de quem se não esquece da sua simpatia para comigo (dos elefantes guardo
a memória e a tromba – “hélas” para o marfim...),
Miguel Rovisco
PS
– Ouça: se teve o mau gosto de ler a carta até o final, não tenha agora o gosto
ainda mais reprovável de entrar imediatamente em contacto comigo. Seria
ridículo! Acabei de lhe confessar que, pela minha parte, também simpatizo com a
sua pessoa – aliás, você e a jovem Dra. Manuela Pinto Barbosa, do M. da
Cultura, foram o único oásis para a minha tromba... Escreva-me antes daqui a um
mês ou dois. Melhor: pelo natal, se se lembrar, mande-me um cartão de boas
festas.
(À mão, escrito de lado,
pela letra do Mário Viegas, o
seguinte):
Estas
cartas contam tudo e são completamente inéditas e geniais. Morreu aliás, com
uma carta para mim no bolso. Foi uma paixão. É um CRIME não se publicar a sua
obra. Um dos maiores choques que sofri até hoje.
in, “Pancada de Molière”
Imagem: cópia da carta
acima publicada.
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Miguel
Rovisco (Lisboa, Portugal,1959 - 1987). Foi autor de centenas
de poemas e de 20 peças teatrais.
Mário
Viegas (Santarém, Portugal, 1948 – Lisboa, 1996). Foi actor,
encenador e declamador.
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