O renascer dos belos sentimentos uma vez satisfeitas as
necessidades básicas
«Para se exercerem as virtudes do
espírito é necessário um mínimo de conforto material.»
(Santo Agostinho)
Esta
pungente história se passou no meio de uma selva, nas areias de um deserto, num
velho navio abandonado e sem rumo, em qualquer lugar em que há dificuldade de alimentação
e o homem começa a sentir o remorder do antropo ou qualquer outra fagia que lhe
espicace o estômago.
Pois,
sozinho e sem se alimentar há vários dias o homem vinha caminhando no vasto
areal (ou selva, etc), seguido apenas do seu fiel cachorro.
Lá para as tantas
lhe deu, porém, o espicaçar acima enunciado, a fome bateu-lhe às portas da
barriga: «Pam, pam, pam, ó de casa!».
Já batera antes, mas o homem fingia que
não ouvia.
Naquele momento, porém, não resistiu mais e atendeu à fome.
Matou o
cachorrinho, única coisa comível num raio de quilómetros.
Matou-o, assou-o num
fogo improvisado e comeu-o todo, todo, com uma fome canina (perdão!).
Quando
tinha acabado de comer todo o animal, sentou-se, plenamente satisfeito.
E foi
então que olhou em torno e começou a chorar: «Ai, ai, ai, - soluçou, - pobre do
Luluzinho! Como ele adorava roer esses ossos!».
Moral:
Quando eu tiver uma casa bem confortável
escreverei um Tratado de Sociologia.
Millôr Fernandes, escritor, poeta, humorista, dramaturgo, jornalista (Rio de Janeiro, Brasil, 1923 – 2012), in “Pif-Paf”.
Imagem:pintura de Manuel Araújo (Porto Alegre, Brasil, 1806 – Lisboa, Portugal,
1879).
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