AMÁLIA RODRIGUES
(Lisboa, Portugal, Julho de 1920 – Outubro
de 1999)
DOS
POETAS POPULARES AOS CULTIVADOS
Em grande parte graças a
Amália, a grande literatura portuguesa entrou no fado, com a não pequena ironia
de, muitas vezes, um francês, Alain Oulman, a partir de certa altura ter
contribuído para isso, numa excepcional articulação criadora de duas formações,
a francesa e a portuguesa. A ambos se deve uma importante inflexão dos rumos da
poesia e da música do fado, a partir de princípios dos anos sessenta.
É com Amália que o passo
decisivo é dado, logo nos primeiros anos em que se afirma como uma estrela de
primeira grandeza. Sem abandonar as letras do fado tradicional e os seus
derivados, que de resto continuou a cantar ao longo de toda a sua carreira, é
ela quem começa a procurar, a fazer musicar e a cantar uma série de autores que
não se confundiam com os letristas típicos do fado.
Os mais cantados, como
Pedro Homem de Melo e David Mourão-Ferreira, transportavam essa sensualidade
para o plano dos impulsos genesíacos e da transfiguração erótica, o primeiro,
aliás, mais ligado a uma tradição peninsular a que Jorge de Sena chamava tão desdenhosa
quanto injustamente de “garcilorquismo minhoto”, e o segundo aliando todas as
técnicas do Parnasianismo para a exploração da dialéctica amorosa, da esperança
e do desespero e da explosão da sensualidade.
Mas outros autores devem
ser considerados. Por exemplo, Sidónio Muralha ou Luís de Macedo, um mais
próximo dos neo-realistas, outro pertencente ao grupo da Távola Redonda. E
também autores a que poderíamos chamar “de fronteira”, gente ligada ao
espectáculo e ao jornalismo, como Reinaldo Ferreira e Norberto de Araújo, que
Amália também já canta por essa altura.
A voz de Amália, as suas
intenções de leitura interpretativa, o recorte imponderável do fraseado musical
e o equilíbrio mais ou menos instável posto na dicção, a colocação certeira dos
melismas nos momentos em que o fado carece de expressividade, a transparente
franqueza com que tudo é agenciado e que, felizmente, podemos apreciar hoje em
excelentes recuperações discográficas, tudo isso transfigura versos que por
vezes são perfeitamente banais em momentos de grande intensidade poética e…
fadista.
É a partir de Amália,
mesmo antes da colaboração genial que ela recebeu de Alain Oulman, estando
ainda por estudar o papel que a canção francesa desempenhou na génese das
músicas que ele escreveu para a nossa artista, que os fadistas passam a
tornar-se muito mais exigentes quanto à qualidade literária e à autoria das
novas letras que procuram arranjar para os seus fados.
Será injusto esquecer que
Amália cantou excelentes letras populares e escreveu excelente poesia, que umas
vezes cantou (Lágrima, Estranha forma de vida...) e
outras se limitou a publicar. São poemas instintivamente relacionados com a sua
maneira de estar na vida.
Nos seus versos, ela soube
lançar mão de uma escrita poética intuitiva e certeira, formalmente muito
ancorada na tradição da matriz popular, com uma grande fluência, belos achados
e, por vezes, algumas agudezas quase maneiristas.
Amália soube incutir como
mais ninguém um acento profundamente dramático à expressão daquilo que cantava.
Não apenas por ser dotada de uma voz absolutamente extraordinária. A sua
articulação por vezes centrava-se mais no significante do que no significado,
mas acabava restituindo misteriosamente a este último todo o seu valor, e
encontrou ou inventou melismas, inflexões verbais, tensões intra-silábicas,
portamentos, arabescos e outros efeitos vocais, alguns porventura de uma
inspiração mediterrânica bebida da Andaluzia à Córsega, mas todos eles únicos,
pessoais, intransmissíveis e sobretudo singularmente adequados a traduzir uma
entrega total à intensidade dos sentimentos, das dilacerantes violências da
paixão à angústia mais torturada, à ternura mais límpida, ou à alegria
simplesmente ingénua dos fados que ela cantava.
E também na medida em que
a grande fadista cantou um vastíssimo leque de obras literárias que se
distribuem por sete séculos da nossa literatura e da nossa identidade, podemos
dar razão a David Mourão-Ferreira quando ele afirmou, na morte de Amália, ser ela um
“heterónimo” de Portugal, o “heterónimo” feminino de Portugal.
Imagem: pintura de José Viola
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