AMÁLIA RODRIGUES
(Lisboa, Portugal, Julho de 1920 – Outubro
de 1999)
POÉTICA DE AMÁLIA
Amália,
nos seus versos, soube lançar mão de uma escrita poética intuitiva e certeira,
formalmente muito ancorada na tradição da matriz popular, com uma grande
fluência, belos achados e, por vezes, algumas agudezas quase maneiristas.
A
chave para entender o fenómeno, na parte em que ele pode ser entendido, creio
que está precisamente nessa aliança de gosto apurado, sentido da musicalidade e
do ritmo, simplicidade verbal e naturalidade de expressão que Amália soube
processar com requintada destreza entre a ingénua frescura da tradição e da
poesia do povo (da toada beirã às criações dos letristas populares que cantava)
e o trato aturado com a poesia mais elaborada dos escritores que foi
incorporando no seu repertório.
Há
momentos de grande eficácia técnica. Os meus dois fados favoritos de que Amália
escreveu a letra, Estranha Forma de Vida e Lágrima, o primeiro com a sua
intensificação repetitiva pela retoma do primeiro verso de cada quintilha no
remate dela, a acentuar a "estranheza" da vida daquele "coração
independente", o segundo com a reiteração sincopada da primeira metade de
cada verso, como se o próprio avançar do poema fosse depender desse
"tactear", desse recomeçar da procura da maneira de dizer para chegar
à máxima intensidade lírica, a exprimir a fragilidade com que o ser humano se
expõe desamparadamente na paixão.
O texto de Lágrima, obra-prima da Amália
letrista, poderia ser quase integralmente reduzido a quatro quadras, mas a sua
transfiguração dramática deve-se a essa espécie de leixa-pren, de retomar
insistente e fracturante do teor de cada verso, reforçando uma dialéctica muito
fadista que poderia esquematizar-se cruamente desta maneira: realidade/sonho,
sofrimento de amor/disponibilidade para morrer.
Vasco Graça Moura, 2009
Imagem: aguarela de António
Luís
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