AMÁLIA RODRIGUES
(Lisboa, Portugal, Julho de 1920 – Outubro
de 1999)
UM NOME, UM FADO EM MUITOS
FADOS, UMA VOZ
- Sinto que nunca canto hoje igual a ontem. Tenho a intuição do fado. Foi qualquer coisa que Deus me deu, mas depois o fado sai dentro de mim consoante o meu estado de alma, os meus nervos, as minhas emoções. Tudo se prende com a nossa interioridade. O fado ou é isso ou não é nada…
- Deus, para mim, é Deus.
Sinto essa força dentro de mim. Acredito em Deus mesmo que não exista o céu.
Não vale a pena tentar explicar. Não encontro explicação em palavras ou em
teorias, tal como, por mais que uma pessoa me tente explicar o que é uma
árvore, também não encontro uma explicação inteira.
- Cá dentro de mim, uma
árvore é qualquer coisa mais forte, mais grandiosa, que a Botânica não consegue
definir. Da mesma forma acredito em Deus plenamente. Ainda que tudo se acabe cá
na terra. Acredito em Deus mesmo que a minha alma não vá para o Céu, nem para o
Inferno, nem para o Paraíso… Sou uma pessoa inculta, não tenho vergonha de o
dizer, mas esta é a minha forma de estar na vida. É a minha filosofia.
- Gostava de ser culta
para exprimir a minha própria sensibilidade, para dizer uma palavra sem ter de
dar uma volta ao Rossio até encontrar a palavra mais expressiva. Não tenho
outras ambições. Não sou política, não gosto de vidas mundanas, nunca alterei a
minha maneira de ser. Deixem-me ser quem sou…
- Colegas, compositores,
intelectuais… Magoaram-me profundamente. Tanta calúnia, tanta mentira. Ao
princípio, eu estava de olhos fechados, e não consegui entender porquê…
- Só não me perdoa quem
não me conhece bem. Mas deixe-me chorar se não rebento!... Julgo que desejaram
queimar-me dizendo que eu era um produto do fascismo, que era uma espia, uma
contrabandista, uma bêbeda… Tantas mentiras horrorosas! Como hei-de curar essa
ferida? Eu quero esquecer, mas dói-me muito este desencanto…
- Até chegaram a dizer que
havia um subterrâneo no meu quintal por onde eu ia ter com o Salazar para ele
se aconselhar comigo!... Disseram também que tentei envenenar Humberto Delgado,
no Brasil… Isto é de uma imaginação incrível! Nunca admiti que pudesse haver
tanta maldade.
- Foram calúnias! Foram
mentiras tremendas que me destruíram a alegria e a saúde. Terei de pedir
desculpa por já cantar o fado há 45 anos?... Não devia cantar o nosso fado só
porque o regime era salazarista ou marcelista?
- Não sou servilista, tal
como não sou uma revolucionária. Por mim, sempre cantei o fado sem pensar em
políticas. Nunca apanhei nenhum comboio ou avião, a não ser aqueles em que me
deslocava e desloco para ir cantar a qualquer terra. Cantar do jeito que eu sei
e sinto. Cantar o nosso fado e o nosso folclore de que tanto gosto. Nunca tive
apoios de nenhum governo nem do anterior, nem dos de depois do 25 de Abril.
- Nunca fui nem nunca
serei uma revolucionária. Nunca quis fazer acreditar o contrário. Nunca me
mascarei ( a não ser pelo Carnaval). Canto o fado que sinto, que gosto de
cantar. Canto as letras que se identificam com a minha sensibilidade. Onde quer
que eu esteja, onde quer que eu vá, é para cantar os meus fados e não para ir
debater questões políticas com os governos… Quero ser o que sempre fui: a
Amália que canta para toda a gente.
- Choca-me a fome em
tantos países. Não sou insensível aos problemas do mundo que me rodeia. Mas sou
por temperamento uma pacifista.
- Nunca mendiguei vistos
para o meu passaporte. Nunca mendiguei contratos. Um dia, a minha empresária em
Paris contratou-me para ir à União Soviética. Fui e cantei lá como em qualquer
outro sítio. Estive no Circo Popov, estive com os coros do Exército Vermelho. O
público soviético ouviu-me cantar e aplaudiu-me, como aconteceu em tantos
outros países.
- Há uma coisa que é
universal e toda a gente entende: é a força do sentimento que uma voz expressa;
é a carga dramática do fado; é a melodia: é o timbre da voz.
- Eu gosto da minha terra,
da minha casa, da minha família, dos meus amigos. Como é que eu, num país
estrangeiro, ia viver sem a minha broa e a minha sardinha assada, sem as minhas
sopas de feijão?! Como é que eu ia passar sem ver o Alentejo, sem ver Trás-os-Montes?!
Tinha lá paciência para andar todos os dias em jantares e almoços de sociedade!
- Não tenho pretensões a
poeta. Deus me livre! Mas ao escrever algumas letras para os meus fados, agora
que estou desiludida de todos os meus sonhos, talvez seja, sim, uma forma de
gritar, de dizer o que me vai na alma. Tenho pena de mim… Sonhei um mundo tão
diferente… Sou uma pessoa de mãos abertas. Entrego-me à amizade sem tomar
precauções. Mas há gente que engana tanto!...
(Excertos da entrevista
feita, em 1985, pela jornalista Maria Augusta Silva)
Imagem: pintura de Camilo Ramos
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