AMÁLIA RODRIGUES
(Lisboa, Portugal, Julho de 1920 – Outubro
de 1999)
UMA
ESTRANHA FORMA DE VIDA
Amália falava português,
espanhol, francês, inglês, alemão e italiano. Fluentemente. E cantava. Não só
isso como lia e conhecia poesia de cada país. E, depois, tinha uma intuição a
propósito da qual acho que se pode falar mesmo de genialidade. A Amália era a
única cantora que, por exemplo, percorria a Itália toda, da Sicília a Milão, e
cantava nos vários dialectos: siciliano, napolitano (gravou um disco muito
bonito, Anema e Core, a última gravação que ela fez, em 1995, com o Roberto
Murolo), romano, por aí fora... E tinha uma intuição, uma inteligência na
compreensão dos poetas que não era nada estudada. É isso que, depois, passa
muito para a música e que atinge as pessoas em qualquer parte do mundo.
Foi isso que levou à
criação do filme a partir de uma entrevista só com ela. Na origem, eu tinha
marcado uma série de entrevistas com outros artistas (Pavarotti, Caetano
Veloso...) que iriam falar sobre ela. Tinha uma equipa de cinco pessoas a fazer pesquisa de imagem.
Sabia que, por exemplo, no Japão, no México e nos EUA havia muita coisa.
Tínhamos todas as listas dos concertos. Começaram a chegar imagens de
televisão, de fãs que tinham Super 8... (existe agora um arquivo fantástico, um
património de 150 horas de imagens, e obviamente não pude utilizar tudo).
A história da gravação do
concerto para a televisão americana, por exemplo, é curiosa. O Vítor Pavão dos
Santos (co-autor comigo do filme) tinha uma fotografia desse programa, em 1953,
quando ela estava a cantar no "La Vie En Rose". Ligámos à NBC, que
era a produtora de televisão, confirmaram a data, mas não tinham registo. Museu
de Television Broadcast, o MoMa, museus de cinema, Los Angeles, tudo o que
existia no mundo dos arquivos de televisão... Até que o italiano, chefe desta
equipa de cinco pessoas, se lembrou de que, nos anos 50, quem ficava com as
gravações eram os próprios artistas.
Conseguimos o número de
telefone do Eddie Fisher (que, nesse programa, juntamente com o Don Ameche,
aparecia com a Amália), na altura ainda vivo. Telefonámos-lhe e, naturalmente,
ele não fazia ideia de quem éramos.
Recordava-se perfeitamente
dela (tinha, aliás, estado cá, em casa da Amália, com a mulher, a Debbie
Reynolds, em lua-de-mel), embora já não falasse com ela há vinte anos.
Confirmou que tinha a gravação, mas disse-nos "têm de pôr a Amália ao
telefone comigo". Pus os dois em contacto e, assim que ela se riu e ele a
ouviu, o assunto ficou resolvido. Esta é, aliás, uma gravação histórica: é a
primeira gravação de um artista português em televisão. Nessa altura, a
televisão não existia ainda em Portugal.
À medida que eu ia
recebendo as cassetes, telefonava-lhe e pedia para ela ver as imagens. Ela viu
a totalidade das 150 horas de imagens! Pela primeira e última vez. Recordava-se
de imensos pormenores impressionantes. Era uma época em que o grupo dos
artistas da música, dos "crooners", era muito mais pequeno,
conheciam-se todos. Os tipos do "ratpack" (o gang do Sinatra, Dean
Martin, Sammy Davis...), Eddie Fisher, Vic Damone, os italo-americanos...
encontravam-se nos mesmos bares e iam beber copos por aí.
A Amália ia-me contando
que andou a cantar para eles... Era evidente que não precisava de fazer
entrevistas a outras pessoas. Tinha de ser ela a falar perante aquele espelho.
Já depois do visionamento das imagens todas, fiz-lhe uma entrevista durante
cinco dias, no Brejão, sempre à noite, das onze às cinco da manhã. Ela era um
vampiro, vivia de noite...
Ela aprovava umas versões
e recusava outras. Havia, por exemplo, dez gravações da "Gaivota".
Ela nunca cantava o mesmo fado da mesma forma (aliás, na versão de cinco horas,
meti cinco versões todas diferentes do "Povo Que Lavas no Rio"). Em
cada música, a Amália tomava uma trajectória diferente, que depois analisava.
Está tudo nesse arquivo, hoje na Valentim de Carvalho, mas que espero que, um
dia, algum governo, se decida a classificar como património cultural nacional
ou internacional.
É fundamental conservar
aquelas imagens todas e passá-las para digital. Dentro de dez, quinze anos, a
fita magnética vai começar a deteriorar-se e será tarde de mais.
Bruno de Almeida,
realizador do filme “Amália, Uma Estranha Forma de Vida” (1995).
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