segunda-feira, 24 de julho de 2017

AMÁLIA - Uma Estranha Forma de Vida

 
 
 
AMÁLIA RODRIGUES
(Lisboa, Portugal, Julho de 1920 – Outubro de 1999)

 
UMA ESTRANHA FORMA DE VIDA

 
Amália falava português, espanhol, francês, inglês, alemão e italiano. Fluentemente. E cantava. Não só isso como lia e conhecia poesia de cada país. E, depois, tinha uma intuição a propósito da qual acho que se pode falar mesmo de genialidade. A Amália era a única cantora que, por exemplo, percorria a Itália toda, da Sicília a Milão, e cantava nos vários dialectos: siciliano, napolitano (gravou um disco muito bonito, Anema e Core, a última gravação que ela fez, em 1995, com o Roberto Murolo), romano, por aí fora... E tinha uma intuição, uma inteligência na compreensão dos poetas que não era nada estudada. É isso que, depois, passa muito para a música e que atinge as pessoas em qualquer parte do mundo.

Foi isso que levou à criação do filme a partir de uma entrevista só com ela. Na origem, eu tinha marcado uma série de entrevistas com outros artistas (Pavarotti, Caetano Veloso...) que iriam falar sobre ela. Tinha uma equipa de cinco pessoas a fazer pesquisa de imagem. Sabia que, por exemplo, no Japão, no México e nos EUA havia muita coisa. Tínhamos todas as listas dos concertos. Começaram a chegar imagens de televisão, de fãs que tinham Super 8... (existe agora um arquivo fantástico, um património de 150 horas de imagens, e obviamente não pude utilizar tudo).

A história da gravação do concerto para a televisão americana, por exemplo, é curiosa. O Vítor Pavão dos Santos (co-autor comigo do filme) tinha uma fotografia desse programa, em 1953, quando ela estava a cantar no "La Vie En Rose". Ligámos à NBC, que era a produtora de televisão, confirmaram a data, mas não tinham registo. Museu de Television Broadcast, o MoMa, museus de cinema, Los Angeles, tudo o que existia no mundo dos arquivos de televisão... Até que o italiano, chefe desta equipa de cinco pessoas, se lembrou de que, nos anos 50, quem ficava com as gravações eram os próprios artistas.

Conseguimos o número de telefone do Eddie Fisher (que, nesse programa, juntamente com o Don Ameche, aparecia com a Amália), na altura ainda vivo. Telefonámos-lhe e, naturalmente, ele não fazia ideia de quem éramos.

Recordava-se perfeitamente dela (tinha, aliás, estado cá, em casa da Amália, com a mulher, a Debbie Reynolds, em lua-de-mel), embora já não falasse com ela há vinte anos. Confirmou que tinha a gravação, mas disse-nos "têm de pôr a Amália ao telefone comigo". Pus os dois em contacto e, assim que ela se riu e ele a ouviu, o assunto ficou resolvido. Esta é, aliás, uma gravação histórica: é a primeira gravação de um artista português em televisão. Nessa altura, a televisão não existia ainda em Portugal.

À medida que eu ia recebendo as cassetes, telefonava-lhe e pedia para ela ver as imagens. Ela viu a totalidade das 150 horas de imagens! Pela primeira e última vez. Recordava-se de imensos pormenores impressionantes. Era uma época em que o grupo dos artistas da música, dos "crooners", era muito mais pequeno, conheciam-se todos. Os tipos do "ratpack" (o gang do Sinatra, Dean Martin, Sammy Davis...), Eddie Fisher, Vic Damone, os italo-americanos... encontravam-se nos mesmos bares e iam beber copos por aí.

A Amália ia-me contando que andou a cantar para eles... Era evidente que não precisava de fazer entrevistas a outras pessoas. Tinha de ser ela a falar perante aquele espelho. Já depois do visionamento das imagens todas, fiz-lhe uma entrevista durante cinco dias, no Brejão, sempre à noite, das onze às cinco da manhã. Ela era um vampiro, vivia de noite...

Ela aprovava umas versões e recusava outras. Havia, por exemplo, dez gravações da "Gaivota". Ela nunca cantava o mesmo fado da mesma forma (aliás, na versão de cinco horas, meti cinco versões todas diferentes do "Povo Que Lavas no Rio"). Em cada música, a Amália tomava uma trajectória diferente, que depois analisava. Está tudo nesse arquivo, hoje na Valentim de Carvalho, mas que espero que, um dia, algum governo, se decida a classificar como património cultural nacional ou internacional.

É fundamental conservar aquelas imagens todas e passá-las para digital. Dentro de dez, quinze anos, a fita magnética vai começar a deteriorar-se e será tarde de mais.

 
Bruno de Almeida, realizador do filme  “Amália, Uma Estranha Forma de Vida” (1995).

 
 

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