AMÁLIA RODRIGUES
(Lisboa, Portugal, Julho de 1920 – Outubro
de 1999)
LÁGRIMAS
PARA AMÁLIA
Amália ficou chocada
quando Natália Correia leu, num serão em sua casa, extractos da peça A Pécora, um dos grandes êxitos do
teatro português pós-25 de Abril.
Frequentadora das recepções
da fadista, com David Mourão Ferreira, Vitorino Nemésio, Ary dos Santos, Alain
Oulman, Vinicius de Morais, a escritora afastou-se delas nos finais da década
de 60 para emergir, entre seguidores e admiradores próprios, no Botequim – onde
se fixaria, imporia até ao fim da vida.
Demasiado voluntariosas e
caprichosas, as duas depressa desconvergiriam. «Está uma beata horrenda»,
exclamava-me de Amália, Natália; «Tornou-se uma herege insuportável»,
contrapunha-me, de Natália, Amália.
Curiosamente, o período em
que conviveram foi o mais pujante das suas carreiras. Amália revolucionou o
mundo musical cantando Camões, Natália desafiou o regime escrevendo O Homúnculo (peça sobre Salazar), entre
escândalos, polémicas, inquirições e debates públicos.
«Eram ambas excessivamente
grandes, egocêntricas, possessivas para conviverem uma com a outra nos mesmos
espaços. A solidão espiritual e intelectual que sentiam asfixiava-as,
exacerbava-as por vezes até à insuportabilidade.
Cantar e escrever
fizera-se a sua salvação – cantar e escrever entre pequenas cortes de algodão
em rama com que tentavam aquietar o mistério inculcado em si pelo destino. Morreram
da mesma maneira, a fugir dos seus quartos, de madrugada, as veias rasgadas
pelo magma que as habitava, as desmesurava.
Amália e Natália tiveram
vidas afectivas desniveladas, desconvencionais, como sucede aos que não saem à
procura da paixão porque sabem que estão fora dela. Cedo perceberam que a
felicidade amorosa não existiria para si, excluídas que foram, pela excepcionalidade
transportada da sua simulação.
Dúplices, ver-se-iam
transformadas em «ícones» de minorias exuberantes, papéis que velavam com
indisfarçável deleite – Amália (predominando) nos grupos femininos, Natália nos
masculinos.
«Eu não me sinto com uma
idade, uma cor, um sexo só», diziam-me uma e outra, sem saberem do dizer de uma
e outra. Frases, reminiscências, pensamentos idênticos repetiam-se nas suas
reflexões com grande pudícia e imprevisibilidade: «Considero muito as pessoas
que preparam a sua morte», por exemplo, exemplos de obsessões comuns. A ligação
ao indizível, ao inexplicável tornou-se uma teia que as enovelou, macerou para
sempre.
Fernando Dacosta, in
“Nascido no Estado Novo”
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