quinta-feira, 26 de maio de 2016

CANTOCHÃO RADIOFÓNICO






CANTOCHÃO RADIOFÓNICO


Abro a telefonia… Uma voz chorosa, opaca, lamuria qualquer coisa, mastigando as palavras. Com esforço, acabo por perceber que não se trata das exéquias de ninguém. E, num esforço supremo para separar as palavras do que insinua o tom plangente, verifico que a voz fala de poesia. Mas a poesia não morreu, caramba! – para que estará aquele homem a falar dela como se fosse já do outro mundo… ou ele é que será do outro mundo?

Saio por uns minutos da sala. Ao voltar, é outra voz - mas a choradeira continua. É porém, agora, uma voz de mulher, que segrega tédio, fúnebre, fúnebre. Volto a fazer o mesmo esforço: que estará ela a chorar? Felizmente, algumas palavras que me são familiares põem-me na boa pista: não é carpideira, é uma «diseuse», como se usava dizer outrora: a voz feminina está a recitar versos – perdão: a chorá-los.

E é sempre isto: para falar de poesia, para recitar versos, aqueles senhores e aquelas senhoras consideram indispensável uma voz trémula, estertores de moribundo. Os versos podem ser alegres, triunfantes, dinâmicos, cheios de vida: sejam eles o que forem, eles e elas choram-nos – e choram sobre eles.

Porque não ficam em casa, a chorar a faltinha de jeito com que Deus os brindou? Em casa, para as visitas, que ao menos teriam a consolação de lhes comerem os bolos. Nos tempos que vão correndo, é um sacrifício que vale a pena.



in “Mundo Literário”: semanário de crítica e informação literária, científica e artística – de 1 de Junho de 1946.


Imagem: pintura de Pedro Victor Sousa (Ilha de Santa Maria, Açores, Portugal, 1970).

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