CANTOCHÃO
RADIOFÓNICO
Abro a telefonia… Uma voz
chorosa, opaca, lamuria qualquer coisa, mastigando as palavras. Com esforço,
acabo por perceber que não se trata das exéquias de ninguém. E, num esforço
supremo para separar as palavras do que insinua o tom plangente, verifico que a
voz fala de poesia. Mas a poesia não morreu, caramba! – para que estará aquele
homem a falar dela como se fosse já do outro mundo… ou ele é que será do outro
mundo?
Saio por uns minutos da
sala. Ao voltar, é outra voz - mas a choradeira continua. É porém, agora, uma
voz de mulher, que segrega tédio, fúnebre, fúnebre. Volto a fazer o mesmo
esforço: que estará ela a chorar? Felizmente, algumas palavras que me são
familiares põem-me na boa pista: não é carpideira, é uma «diseuse», como se
usava dizer outrora: a voz feminina está a recitar versos – perdão: a
chorá-los.
E é sempre isto: para
falar de poesia, para recitar versos, aqueles senhores e aquelas senhoras
consideram indispensável uma voz trémula, estertores de moribundo. Os versos
podem ser alegres, triunfantes, dinâmicos, cheios de vida: sejam eles o que
forem, eles e elas choram-nos – e choram sobre eles.
Porque não ficam em casa,
a chorar a faltinha de jeito com que Deus os brindou? Em casa, para as visitas,
que ao menos teriam a consolação de lhes comerem os bolos. Nos tempos que vão
correndo, é um sacrifício que vale a pena.
in “Mundo Literário”:
semanário de crítica e informação literária, científica e artística – de 1 de
Junho de 1946.
Imagem: pintura de Pedro Victor Sousa (Ilha de Santa Maria,
Açores, Portugal, 1970).
Sem comentários:
Enviar um comentário