JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS
(Lisboa, Portugal, 1901 — Nova
Iorque, EUA, 1980)
Escritor, tradutor
***
A Avenida Almirante Reis
Ponho-me
a olhar a Avenida cá de cima, da minha água-furtada e meu refúgio, e digo-lhe,
seu Apolinário: tudo isto levou uma grande volta. Antigamente vivia-se aqui
como num céu aberto. Nem faz ideia. Onde isso vai, parece que não, os dias
passam devagar, mas os anos vão-se depressa. A gente dá por isso quando não há
remédio.
Foi
nos começos da República, e eu, de calção, com os sapatos nas poças de chuva,
travava os primeiros corpo a corpo com a gramática latina e o verbo Amar. A
Avenida era então novinha em folha, como o regime. Começava lá em baixo, num
boqueirão sinistro, um rio de lama onde às vezes havia inundações e gritos,
entre ribanceiras e prédios esguios, e ia-se perder ao alto, nas quintas e
azinhagas. As casas, modestas e limpinhas, tinham fachadas de azulejo de mau
gosto, outras eram pintadas a cor.
Havia
as «terras», lotes vagos de barro viscoso onde a gente ia «reinar», e as
carroças se atolavam até aos eixos, com muitas pragas dos carroceiros. As
árvores eram frágeis e verdes, de mocidade e esperança. Que sossego o desses
dias agitados! Isto não era Avenida, era a Rua do Lá-Vai-Um.
in”Léah e outras histórias” (1958)
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