Machado de
Assis (Rio de Janeiro, Brasil, 1839 – 1908).
É um dos mais importantes escritores da literatura brasileira.
Palavras de Machado
de Assis:
“Está morto: podemos elogiá-lo à vontade.”
Todos temos duas
Almas
Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que
olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à
vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica.
Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir.
A alma exterior pode ser um
espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há
casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma
pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de
botas, uma cavatina, um tambor, etc.
Está claro que o ofício dessa segunda alma
é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é,
metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde
naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da
alma exterior implica a da existência inteira. (...) Agora, é preciso saber que
a alma exterior não é sempre a mesma...
- Não?
- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo
a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que
morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas
enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável.
Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um
chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade,
suponhamos.
Machado de
Assis, in "O Espelho"
Imagem: pintura de Joseph Mallord William (Londres, Reino Unido, 1775 – 1851).
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