Miguel Torga (São Martinho da Anta, Portugal, 1907 – Coimbra, Portugal, 1995). Toda a sua obra está intensamente
ligada à sua terra natal.
Palavras de Miguel
Torga:
“Em
Portugal, as pessoas são imbecis ou por vocação, ou por coacção, ou por
devoção.”
Vivemos numa
Paz de Animais Domésticos
Uma cobra de água numa poça do choupal, a gozar o
resto destes calores, e umas meninas histéricas aos gritinhos, cheias de saber
que o bicho era tão inofensivo como uma folha.
Por fidelidade a um mandato profundo, o nosso
instinto, diante de certos factos, ainda quer reagir. Mas logo a razão acode, e
o uivo do plasma acaba num cacarejo convencional. Todos os tratados e todos os
preceptores nos explicaram já quantas espécies de ofídios existem e o soro que
neutraliza a mordedura de cada um.
Herdamos um mundo já quase decifrado, e sabemos de cor
as ervas que não devemos comer e as feras que nos não podem devorar.
Vivemos numa paz de animais domésticos, vacinados, com
os dentes caninos a trincar pastéis de nata, tendo aos pés, submissos, os
antigos pesadelos da nossa ignorância.
Passamos pela terra como espectros, indo aos jardins
zoológicos e botânicos ver, pacata e sabiamente, em jaulas e canteiros, o que
já foi perigo e mistério. E, por mais que nos custe, não conseguimos captar a
alma do brinquedo esventrado.
O homem selvagem, que teve de escolher tudo, de
separar o trigo do joio, de mondar dos seus reflexos o que era manso e o que
era bravo, esse é que possuiu verdadeiramente a vida e o mundo. Diante duma
natureza inteira e una, também ele tinha necessariamente de ser inteiro e uno.
Sem amigos e sem vizinhos, sozinho contra as árvores e contra as sombras, ele
era uma fortaleza em si, tendo na própria pele as ameias.
Que totalidade a de um ser que não pode confiar senão
em si! Socialmente, seremos assim (e somos, certamente) mais fáceis de
conduzir, mais úteis, mais progressivos. Mas, individualmente, a que distância
estamos de um homem das cavernas! Que tamanho o dele, a caçar bisões, e que
pequenez a nossa, a ganhar taças em torneios de tiro aos pombos!
O nosso gritinho de horror diante de qualquer lesma dá
bem a perdição a que chegámos. Civilizámo-nos, mas à custa da nossa mais
profunda integridade, dispersando-nos nas coisas que fomos desvendando.
Na cobra de hoje ninguém viu sinceramente veneno ou
morte. Vimos todos, sim, o manual que aprendemos no liceu. E o estremecimento
das meninas histéricas, eco delido do uivo profundo de pavor e de incerteza dos
nossos antepassados, foi dum ridículo tal que respingou outros aspectos e
outros recantos da existência. Que espécie de sinceridade profunda, de lealdade
incontroversa, haverá, por exemplo, em acreditar em Deus com a bomba atómica na
mão?
É bem que o homem faça todas as experiências,
inclusivamente consigo. Que liberte a energia das pedras e se liberte também a
si de todas as clausuras. Mas os instintos? Poderá, na verdade, ele viver
desfalcado dessa força que o fechava como um punho e lhe dava uma coesão igual
à dos átomos antes de serem bombardeados?
Pelo caminho que levamos, um dia virá em que tudo em
nós será consciência, compreensão e sabedoria. Mas nessa mesma hora estaremos
desempregados no mundo. Todos saberemos resolver a equação da vida na ardósia
negra onde dantes eram as trevas da nossa virgindade criadora, mas talvez já
não haja vida, então.
Miguel Torga, in "Diário "
Imagem: Pintura de Frederick Richard Lee (Reino Unido, 1798-1879).
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