quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

FERREIRA DE CASTRO – Os Mineiros





FERREIRA DE CASTRO 

(Oliveira de Azeméis, Portugal, 1898 — Porto, 1974)

Escritor 

Precursor do neo-realismo, as suas obras, arrancadas à vida, impõem-se pela compaixão com os humildes e oprimidos.
Emigrou para o Brasil em 1911, tendo trabalhado num seringal na Amazónia. 
Atingiu o apogeu com a publicação do romance A Selva.


OS MINEIROS


Laceram-se as entranhas da Terra e desse ventre fecundo surgem, sob os braços incansáveis dos mineiros, prodigiosas riquezas – forças que despertam enfim, depois do seu longo sono no regaço dos séculos, auroras de metais que se tornarão incandescentes para engrinaldar o Progresso.

É daí que vem esse turbilhão epopeico que os complicados mecanismos cantarão depois, em ária triunfante, na penumbra das grandes fábricas, no seio dos grandes transatlânticos, na fornalha crepitante dos lestos comboios.

E o mineiro surge assim como um desbravador de segredos milenários – Sísifo que abandonou o dorso da montanha, para desta conhecer o pétreo coração. Vai mais além da profundidade que lhe é concedida para sepultura – e leva com ela ao mundo das trevas os primeiros fachos de luz, numa peregrinação mefistofélica de energia e de luta.

E sob o seu poder, o granito fende-se, a rocha despedaça-se – abre-se a terra em alamedas sinistras, em abóbadas onde parecem ecoar os rugidos da morte.

E o ventre da terra chega a ser o estranho palácio dum senhor tenebroso, duma sombra satânica, que odeia o Sol e que só após muita luta que ao fundo dos seus trágicos corredores, das suas medonhas galerias, as pupilas de sangue dos faróis primitivos fossem substituídas pelos seios em fogo das lâmpadas eléctricas.

E impassíveis ante a ameaça dos escombros, ante as exalações da morte, os mineiros continuam sua rude faina – heróis que não terão estátua, Hércules que não figurarão na mitologia.

De quando em quando, ao longe, ouve-se o ruído da catásfrofe que se avizinha, sente-se o olor mortal adensando o ambiente - e todavia os mineiros prosseguem sempre, negros o tronco e as mãos, os olhos e a fronte, como se acabassem de destruir a própria alma das trevas.

Seu sacrifício é ignorado, mesmo quando no Inverno o carvão que eles arrancaram à terra amorna e enlanguesce as salas onde se ostentam corpos indolentes; seu destino é desconhecido, mesmo quando nos dedos de mulheres belas, esguios e pródigos de carícias, se mostram orgulhosos os diamantes que eles ajudaram a conquistar.

Todo o mundo contemporâneo, com a sua alegoria mecânica, com as novas comodidades e confortos descobertos pela ciência, é animado e é consequência desse esforço anónimo que no seio da terra realizam os mineiros.
Eles na verdade só desceram às entranhas da terra para auscultar o coração dos vulcões…
São os dominadores de outro mundo e são também os párias desta terra que trilhamos – párias a quem está vedado quase toda a vida, a contemplação das paisagens geórgicas, do céu de anil, do cortejo dos astros.

O ruído da vida exterior só chega até eles na picareta que escava sempre, sempre, interminavelmente. A palpitação do mundo só é escutada lá em baixo como um eco dum secular martírio – a que está sujeita a humanidade e a que eles estão sujeitos também.
E por isso, quando chega a hora do breve repouso e eles assomam à superfície da terra, seus olhos volvem-se com espanto para o Sol – e em seu assombro parecem até não o conhecer.

A vida roubou-lhes tudo, tudo, roubou-lhes até a própria luz, deixando-lhes apenas aquele longo rosário de trabalhos e sacrifícios que eles vão desfiando no silêncio da treva.



in “A Epopeia do Trabalho”


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