FERREIRA DE CASTRO
(Oliveira de Azeméis, Portugal, 1898 — Porto, 1974)
Escritor
Precursor do
neo-realismo, as suas obras, arrancadas à vida, impõem-se pela compaixão com os
humildes e oprimidos.
Emigrou para o Brasil em
1911, tendo trabalhado num seringal na Amazónia.
Atingiu o apogeu com a
publicação do romance A Selva.
OS
MINEIROS
Laceram-se
as entranhas da Terra e desse ventre fecundo surgem, sob os braços incansáveis
dos mineiros, prodigiosas riquezas – forças que despertam enfim, depois do seu
longo sono no regaço dos séculos, auroras de metais que se tornarão incandescentes
para engrinaldar o Progresso.
É
daí que vem esse turbilhão epopeico que os complicados mecanismos cantarão
depois, em ária triunfante, na penumbra das grandes fábricas, no seio dos
grandes transatlânticos, na fornalha crepitante dos lestos comboios.
E
o mineiro surge assim como um desbravador de segredos milenários – Sísifo que
abandonou o dorso da montanha, para desta conhecer o pétreo coração. Vai mais
além da profundidade que lhe é concedida para sepultura – e leva com ela ao
mundo das trevas os primeiros fachos de luz, numa peregrinação mefistofélica de
energia e de luta.
E
sob o seu poder, o granito fende-se, a rocha despedaça-se – abre-se a terra em
alamedas sinistras, em abóbadas onde parecem ecoar os rugidos da morte.
E
o ventre da terra chega a ser o estranho palácio dum senhor tenebroso, duma
sombra satânica, que odeia o Sol e que só após muita luta que ao fundo dos seus
trágicos corredores, das suas medonhas galerias, as pupilas de sangue dos
faróis primitivos fossem substituídas pelos seios em fogo das lâmpadas
eléctricas.
E
impassíveis ante a ameaça dos escombros, ante as exalações da morte, os
mineiros continuam sua rude faina – heróis que não terão estátua, Hércules que
não figurarão na mitologia.
De
quando em quando, ao longe, ouve-se o ruído da catásfrofe que se avizinha,
sente-se o olor mortal adensando o ambiente - e todavia os mineiros prosseguem
sempre, negros o tronco e as mãos, os olhos e a fronte, como se acabassem de
destruir a própria alma das trevas.
Seu
sacrifício é ignorado, mesmo quando no Inverno o carvão que eles arrancaram à
terra amorna e enlanguesce as salas onde se ostentam corpos indolentes; seu
destino é desconhecido, mesmo quando nos dedos de mulheres belas, esguios e
pródigos de carícias, se mostram orgulhosos os diamantes que eles ajudaram a
conquistar.
Todo
o mundo contemporâneo, com a sua alegoria mecânica, com as novas comodidades e
confortos descobertos pela ciência, é animado e é consequência desse esforço
anónimo que no seio da terra realizam os mineiros.
Eles
na verdade só desceram às entranhas da terra para auscultar o coração dos
vulcões…
São
os dominadores de outro mundo e são também os párias desta terra que trilhamos
– párias a quem está vedado quase toda a vida, a contemplação das paisagens
geórgicas, do céu de anil, do cortejo dos astros.
O
ruído da vida exterior só chega até eles na picareta que escava sempre, sempre,
interminavelmente. A palpitação do mundo só é escutada lá em baixo como um eco
dum secular martírio – a que está sujeita a humanidade e a que eles estão
sujeitos também.
E
por isso, quando chega a hora do breve repouso e eles assomam à superfície da
terra, seus olhos volvem-se com espanto para o Sol – e em seu assombro parecem
até não o conhecer.
A
vida roubou-lhes tudo, tudo, roubou-lhes até a própria luz, deixando-lhes
apenas aquele longo rosário de trabalhos e sacrifícios que eles vão desfiando
no silêncio da treva.
in “A Epopeia do Trabalho”
Sem comentários:
Enviar um comentário