PEQUENO ESTUDO SOBRE A HISTÓRIA DA CAROCHINHA
Na linguagem popular existe uma locução genérica para
significar toda a classe de tradição imaginosa, desde a lenda local ou pessoal
até à parlenda infantil, - histórias da
Carochinha.
De facto os contos ou histórias
da Carochinha são ignorados por aqueles que empregam a locução com um certo
desdém pejorativo. Na Feira de Anexins,
de D. Francisco Manuel de Melo, do meado do século XVII, acha-se uma preciosa
referência à História da Carochinha,
como sendo o feitiço e encanto das crianças:
«- Espere; contar-lhe-ei uma história.
- A da Carochinha?
- Não buscará
outra mais cara, que essa é muito barata?
- Pois
digo-lhe, que ainda com a carocha, esta história
é o feitiço das crianças.»
Neste trecho há dois equívocos seiscentistas, a relação
entre carochinha e barata, (contraposição de caro com barato) e o da
carocha com a mitra de ignomínia que a Inquisição enfiava na cabeça dos
desgraçados que atirava às fogueiras.
O que nos interessa aqui é a referência
ao gosto das crianças por esta história, no século XVII, enlevo ainda
vigorosíssimo na vida doméstica actual.
A História da
Carochinha, apresenta na tradição portuguesa diversos estados de
conservação; em Coimbra a sua primeira parte achava-se dissolvida em prosa,
tendo o final na sua forma de lengalenga ainda a estrutura poética; na Ilha da
Madeira repete-se uma versão inteiramente poética, mas um pouco obliterada na
sua parte final. Dos Açores recebemos algumas versões, entre elas uma mais
completa, que publicamos.
Em um entremez, Récipe
de pau, (1792) achamos uma referência ao texto da Carochinha: «está posta
todo o dia àquela janela, com uma mão sobre a outra, feita a Carochinha, e não se envergonha, sendo
uma mulher viúva, e estar com os penteados tão indignos ao seu carácter.»
Eis a parlenda tal com anda nas versões insulares:
A
Carochinha
Era
uma vez
A
Carochinha,
Achou
cinco reis
Ao
varrer da cozinha.
A
Carochinha
Pôs-se
à janela
A
ver quem queria
Casar com ela:
«Quem
quer casar
Com
a Carochinha,
Que
ela é formosa
E bonitinha?
Passou
um porco:
-
Quero-vos eu!
«Que
comes tu?
-
Do que Deus deu.
«Fó,
fó, ó porco,
Eu
não te quero;
Melhor
marido
Que tu espero.
Quem
quer casar
Com
a Carochinha,
Que
ela é formosa
E bonitinha?
Passou
um cão:
-
Quero-vos eu!
«Que
comes tu?
-
Do que Deus deu.
«Fó,
fó, ó porco,
Eu
não te quero;
Melhor
marido
Que tu espero.
Vão
passando o boi, o gato e outros animais, ela sempre:
Quem
quer casar
Com
a Carochinha,
Que
ela é formosa
E perfeitinha?
Passou
um rato:
-
Quero-vos eu!
«E
tu que comes?
-
O bom é meu.
«A
ti ó rato,
a
ti, eu quero;
Melhor
marido
Não
o espero!
Casaram-se,
e ele chamava-se o João Ratão.
in, “Revista de Estudos Livres” - 1886
Imagem: Pintura de Henri Matisse (França, 1869-1954).
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