domingo, 15 de janeiro de 2017

PEQUENO ESTUDO SOBRE A HISTÓRIA DA CAROCHINHA





PEQUENO ESTUDO SOBRE A HISTÓRIA DA CAROCHINHA


Na linguagem popular existe uma locução genérica para significar toda a classe de tradição imaginosa, desde a lenda local ou pessoal até à parlenda infantil, - histórias da Carochinha

De facto os contos ou histórias da Carochinha são ignorados por aqueles que empregam a locução com um certo desdém pejorativo. Na Feira de Anexins, de D. Francisco Manuel de Melo, do meado do século XVII, acha-se uma preciosa referência à História da Carochinha, como sendo o feitiço e encanto das crianças:

«- Espere; contar-lhe-ei uma história.
  - A da Carochinha?
  - Não buscará outra mais cara, que essa é muito barata?
  - Pois digo-lhe, que ainda com a carocha, esta história é o feitiço das crianças.»

Neste trecho há dois equívocos seiscentistas, a relação entre carochinha e barata, (contraposição de caro com barato) e o da carocha com a mitra de ignomínia que a Inquisição enfiava na cabeça dos desgraçados que atirava às fogueiras. 

O que nos interessa aqui é a referência ao gosto das crianças por esta história, no século XVII, enlevo ainda vigorosíssimo na vida doméstica actual.

A História da Carochinha, apresenta na tradição portuguesa diversos estados de conservação; em Coimbra a sua primeira parte achava-se dissolvida em prosa, tendo o final na sua forma de lengalenga ainda a estrutura poética; na Ilha da Madeira repete-se uma versão inteiramente poética, mas um pouco obliterada na sua parte final. Dos Açores recebemos algumas versões, entre elas uma mais completa, que publicamos. 

Em um entremez, Récipe de pau, (1792) achamos uma referência ao texto da Carochinha: «está posta todo o dia àquela janela, com uma mão sobre a outra, feita a Carochinha, e não se envergonha, sendo uma mulher viúva, e estar com os penteados tão indignos ao seu carácter.»
Eis a parlenda tal com anda nas versões insulares:


A Carochinha

Era uma vez
A Carochinha,
Achou cinco reis
Ao varrer da cozinha.
A Carochinha
Pôs-se à janela
A ver quem queria
Casar com ela:

«Quem quer casar
Com a Carochinha,
Que ela é formosa
E bonitinha?

Passou um porco:
- Quero-vos eu!
«Que comes tu?
- Do que Deus deu.
«Fó, fó, ó porco,
Eu não te quero;
Melhor marido
Que tu espero.

Quem quer casar
Com a Carochinha,
Que ela é formosa
E bonitinha?

Passou um cão:
- Quero-vos eu!
«Que comes tu?
- Do que Deus deu.
«Fó, fó, ó porco,
Eu não te quero;
Melhor marido
Que tu espero.

Vão passando o boi, o gato e outros animais, ela sempre:

Quem quer casar
Com a Carochinha,
Que ela é formosa
E perfeitinha?

Passou um rato:
- Quero-vos eu!
«E tu que comes?
- O bom é meu.
«A ti ó rato,
a ti, eu quero;
Melhor marido
Não o espero!

Casaram-se, e ele chamava-se o João Ratão.



in, “Revista de Estudos Livres” - 1886
Imagem: Pintura de Henri Matisse (França, 1869-1954).


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