OH! JEAN RICHEPIN! OH!
Lisboa, Portugal, 8 de Janeiro de 1910
Vai um entusiasmo grande
por essa Lisboa, que se boquiabre em ohs! de admiração descomedidos, parvinhos –
oh! Richepin*, Richepin ! (revirando o bugalho do olho) - um entusiasmo apelintrado
e falso pela conferência no Teatro D. Amélia do maior poeta da França, segundo
a opinião de várias gazetas, entusiasmo delirento em que visionar se podem para
logo os esgares clownescos de uma gente palhaça, que, à força, quer espantar a
galeria - oh! a chanson des gueaux,
oh! as Blasphèmes, oh ! la mer!
E os jornais veem cheios
da conferência, das impressões da conferência, sem dizerem nada, sem nos
fazerem saber o que Richepin disse, mas, a compensar, traindo em todas as
linhas, amassadas de lugares comuns fedorentos, nojentos, estilentos, a febre
funda que marcou a alma do repórter que as espremeu para o papel e que assistiu
à falácia cabeceando de sono - aquele repórter, coitado, magro e de casaco coçado,
atirado asperamente paras lides jornalísticas por um chumbo fatal no seu exame
de francês.
Sendo certo que para se ter
compreendido a conferência de Richepin era preciso, além de outras condições,
saber perfeitamente o francês e sendo certo que raros assistentes o sabiam - fácil
torna concluir-se que a maior parte da assembleia ficou a ver navios. Entanto,
todos berram: - que sim senhor,… muito bonito,… a voz de oiro do Poeta,… a frase
quente, … a forma brihantíssima!...
Pantominice safardana que puxa o vómito e que faz com que nunca e em nenhuma circunstância, alguém diga claro e forte o que pensa, o que atinge, o que sente! Uma desonestidade incomensurável, mixto de receio escolhido e de bazófia grosseira que tolhe toda a gente, obrigando-a a descambar numa falta de sinceridade de que só há dar-lhe correctivo a pontapé.
Até o sr. Júlio Dantas, ao apresentar o conferente em palavras académicas e ocas, entre outras coisas, disse, pela voz do sr. Chaby, pouco mais ou menos: - que a maior parte dos ouvintes conhecia o seu Richepin como os seus dedos, de cor e salteado! Júlio Dantas sentia isto, julgava isto, pensava isto? Não! O que Júlio Dantas sentia era que a maior parte da assistência os únicos versos que sabia de cor eram os do Noivado do Sepúlcro. Não disse - teve medo! Foi insincero e a esta insinceridade a assistência corresponde, é claro, com um snobismo refinado,quintessênciado e põe-se a dar ares de ter compreendido aquilo, tão magnificamente como se o sujeito falasse em português.
E ninguém quer, como
sempre, em todas as situações idênticas, ser o primeiro a romper a intrujice na
dúvida do que fará o vizinho: - se, tocado por tanta franqueza,confessará: eu também
não pesquei patavina - ou se rudemente, rindo-se, lhe chamará ignorante e
burro. E vá dealardear uma sabença pulha, numa grande pose, que faz com que se
ouçam coisas estupendas como a que eu ouvi a um literato que, virado para outro
dizia: - Estou morto por ouvir a conferência de Richepin: la mer, la mer! Deve ser enternecedor esse grande génio a falar
comovidamente sobre o sentimento
maternal.
E
devia!
Mas
eu já lhes conto.
Conheço um individuo que
pratica a literatura e é grande admirador de Anatole France. Quando, no meio de
colegas fala de Anatole é sempre de uma maneira tal que deixa em quem o escuta
a certeza inabalável de que, além de um precioso temperamento de artista, tem o
conhecimento perfeito de todos os segredos da língua francesa: oh! o Anatole!
Não se passa um só dia em que eu não leia um pedaço do Lys Rouge. Que subtileza de estilo! A tragédia gigantesca e ao
mesmo tempo simples daquele ciúme!
E aquele céu de Florença!
Um dia declamava como de
costume, de olho esgazeado e tinto, a sua admiração pelo grande romancista -
quando um francês de barba arruivada e crescida, coberto de farrapos, estendeu
contra um grupo um papel seboso e safado no qual se explicava a desgraça triste
que o empurrara a mendigar e se pedia o auxílio de todos os cavalheiros
generosos… completando os dizeres do papelucho com uma lenga-lenga
ramerranescas, numa voz alcoólica e difícil que, aqui e ali siflava aflita,
como se lhe apertassem o gasganete e não pudesse respirar. O meu conhecido,
depois de largar um vintém, fitando aquelas barbas cor de fogo que o vento
emaranhava, revoltas como a sua vida, grandes como a sua miséria, levado talvez
por uma curiosidade súbita e cheia de simpatia, nada estranhável numa alma de
artista, delicada, comovida, boémia – para mostrar o seu interesse pelo
homenzinho, vai e pergunta-lhe quantos anos tem neste incomparável francês:
- Quant d´annès avez vous? O homenzinho, nada de responder. Todo ele
era caretear um sorriso idiota, abstracto, que ia enfurecendo o meu amigo que,
supondo o franciú surdo, se lhe põe a berrar junto à face sórdida:
- Quant d´annès,
Quant d´annès, Quant d´annès…
O franciú, sempre com o
sorriso idiota, vira para o meu conhecido um olhar grande, espantado, alheio,
em que a aguardente punha um brilho húmido; e, depois de balancear os ombros,
safou-se, rosnando não sei quê e torcendo as pernas cambaleantes.
O meu conhecido murmurou:
- Que bebedeira! Ao que outro (esse era poeta e delirava com Baudelaire que
costumava cantarolar balouçando o pepino - alors,
oh ma beauté, dites á la vermine… ) retrucou-lhe muito a sério, com um ar
chocado: - Sim, o desgraçado estava bêbedo, mas, coitado, fizeste mal em
estares a insultá-lo, a chamar-lhe para aí - cão danado, cão danado!
***
Oh!
o Anatole, o Anatole !
Que estilo!
Oh! Richepin. Que conferência! La mer! La mer ! (a mãe, a mãe como o outro queria!)
Que comédia!
Que pouca-vergonha!
Que estilo!
Oh! Richepin. Que conferência! La mer! La mer ! (a mãe, a mãe como o outro queria!)
Que comédia!
Que pouca-vergonha!
JOÃO PINTO FIGUEIREDO, in “A Farça ”- quinzenário ilustrado – 10 de Janeiro de 1910.
*JEAN RICHEPIN (Medea, Argélia, 1849 – Paris, França,
1926), poeta, romancista e dramaturgo.
Imagem: pintura de David Lynch (Missoula, EUA,1946),
arista visual, músico e realizador de cinema.
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