A POESIA INVENTOU-SE PARA CANTAR O AMOR?
A poesia não se inventou para cantar o amor —
que de resto não existia ainda quando os primeiros homens cantaram. Ela nasceu
com a necessidade de celebrar magnificamente os deuses, e de conservar na
memória, pela sedução do ritmo, as leis da tribo.
A adoração ou captação da divindade e a
estabilidade social, eram então os dois altos e únicos cuidados humanos: - e a
poesia tendeu sempre, e tenderá constantemente a resumir, nos conceitos mais
puros, mais belos e mais concisos, as ideias que estão interessando e
conduzindo os homens.
Se a grande preocupação do nosso tempo fosse o
amor — ainda admitiríamos que se arquivasse, por meio das artes da imprensa,
cada suspiro de cada Francesca. Mas o amor é um sentimento extremamente raro
entre as raças velhas e enfraquecidas.
Os Romeus, as Julietas (para citar só este
casal clássico) já não se repetem nem são quase possíveis nas nossas
democracias, saturadas de cultura, torturadas pela ânsia do bem-estar,
cépticas, portanto egoístas, e movidas pelo vapor e pela electricidade.
Mesmo nos crimes de amor, em que parece
reviver, com a sua força primitiva e dominante, a paixão das raças novas, se
descobrem logo factores lamentavelmente alheios ao amor, sendo os dois
principais aqueles que mais caracterizam o nosso tempo: o interesse e a
vaidade. Nestas condições, o amor que voltou a ser, como na Grécia, um Cupido
pequenino e brincalhão, que esvoaça, surripiando aqui e além um prazer fugitivo
— é removido para entre os cuidados subalternos do homem, muito para baixo do
dinheiro, muito para baixo da política...
É
uma ocupação, sem malícia o digo, que se deixa para quando acabar o dia
verdadeiro e útil, e com ele os negócios, as ideias, os interesses que prendem.
«Já não há hoje nada de produtivo a fazer? Já não há nada de sério em que
pensar?... Bem! Então, um pouco de perfume nas mãos, e abra-se a porta ao amor
que espera!» A isto está reduzida a Vénus fatal e vencedora!
Ora quando uma arte teima em exprimir unicamente um sentimento que se tornou
secundário nas preocupações do homem — ela própria se torna secundária, pouco
atendida e perde a pouco e pouco a simpatia das inteligências.
Por isso hoje,
tão tenazmente, os editores se recusam a editar, e os leitores se recusam a
ler, versos em que só se cante de amor e de rosas.
E o
artista que não quer ser uma voz clamando no deserto e um papel apodrecendo no
armazém, começa a evitar o amor como tema essencial da sua obra.
Eça
de Queirós, (Portugal,
1845-1900) in “A Correspondência de Fradique Mendes”
Imagem: pintura de Rafael Rocha
(Recife, Brasil, 1975).
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